“Meu, cê é loco“. Marcus Rampazzo usava essa expressão para tudo, no melhor dialeto do bairro paulistano da Mooca, onde vive gente de origem italiana, operários imigrantes, dramáticos, musicais. Marcão não era exceção. Divertidamente dramático e virtuosamente musical, Marcão, como era conhecido pelos amigos e alunos, era professor. Ensinava a garotada a tocar guitarra. Era exigente. Formava virtuosos.
Marcus Rampazzo, um especialista em Beatles, foi o George Harrison da banda Beatles Forever.
Um detalhista – Apaixonado pela Inglaterra, era fanático pelos Beatles. Entre os quatro rapazes de Liverpool, idolatrava George Harrison. Fundou a Beatles Forever, a primeira banda cover do Beatles no Brasil. Era detalhista ao extremo. Tinham de tocar as músicas dos Beatles exatamente como eles as haviam gravado. Nota por nota, acorde por acorde, palavra por palavra, com instrumentos idênticos e roupas absolutamente iguais, com o mesmo corte de cabelo, respeitando cada fase da banda. Dos terninhos de gola redonda aos uniformes militares dos tempos de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band.
Marcus Rampazzo, o Marcão, um virtuoso em vários instrumentos. Perfeccionista e obstinado, formou vários guitarrista em São Paulo.
Na Beatles Forever, Marcão era George Harrison. Ele não imitava o beatle. Marcão o encarnava nos mínimos detalhes. Fazia aquela mesma dancinha desajeitada. Tocava tanto quanto ele. Se tivesse nascido na Inglaterra ou nos Estados Unidos, certamente teria tido um reconhecimento maior. Quem sabe teria status de ídolo. Seja como for, ele é ídolo para seus alunos. Sua escola/estúdio era ponto de encontro não apenas de aprendizes, mas também de guitarristas famosos como André Christovam entre outros.
A Beatles Forever, banda cover fiel até nas roupas usadas pelos ingleses de Liverpool.
Muitas histórias – As manhãs de sábado eram dias de falar sobre música no estúdio do Marcão. Lá, em meio a quase seis dezenas de guitarras, além de violões, bateria, amplificadores, órgãos Hammond , bandolins, ukuleles, violinos, estranhos instrumentos indianos, microfones, gravadores, contrabaixos, posters, muita literatura e metros e metros de cabos, Marcão contava histórias. Sabia exatamente como cada música dos Beatles foi gravada, com quais instrumentos, com quais afinações.
Era fanático por instrumentos antigos, os chamados vintage. Uma vez, numa dessas manhãs de sábado, ele começou a desmontar a parte elétrica de uma Fender Stratocaster bastante antiga. Uma relíquia. De repente, assustando a todos, ele gritou: “Ninguém respira!” O que teria teria acontecido? Por que ninguém mais poderia respirar? E o Marcão explicou. “Tem um pozinho da época aqui’. Todos riram, menos o Marcão.
Parafusos e cores – Para quem não curtia o binômio rock/guitarra, as conversas do Marcão poderiam não fazer sentido. Mas ele sabia o que falava. Podia discorrer longamente sobre o formato dos parafusos utilizados pelas guitarras Fender antes de sua compra pela CBS. Podia também opinar sobre o cheiro que emanava de uma Gibson ES-335 fabricada em 1964. Se ela fosse pintada na cor cherry red, seu odor seria bem mais doce do que uma do mesmo modelo na cor sunburst.
No alto, a Rocky de Marcus Rampazzo. Acima, George Harrison com a Rocky original.
Rocky – Aquele 29 de novembro de 2001 talvez tenha sido o dia mais triste na vida do Marcão. George Harrison morria em Los Angeles, vítima de câncer. Marcão dizia que não conseguia acreditar na notícia. Não se conformava com a morte do ídolo de tantos anos. Para homenageá-lo, pegou sua Stratocaster pintada exatamente igual à Rocky (a Strato decorada com motivos psicodélicos, usada por George no filme Magical Mistery Tour) e foi tocar. Quem sabe agora alunos e amigos peguem suas guitarras e façam uma bela homenagem ao mestre que se foi. Uma homenagem ao sexto beatle.
Transcrito do Jornal O ESTADO DE SÃO PAULO.