A RELAÇÃO DOS BEATLES COM O CAVERN CLUB
A RELAÇÃO DOS BEATLES COM O CAVERN CLUB
Em 1957, a banda de skiffle de John Lennon, o Quarrymen, estava em
busca de apresentações e decidiram nomear Nigel Walley, amigo de
infância de John, como empresário do grupo. Durante o dia, Nigel
trabalhava como aprendiz de golfista profissional. No clube de Lee Park
ele conheceu um médico chamado Sytner e acabou descobrindo que seu
filho, Alan, estava prestes a inaugurar um clube de jazz no centro de
Liverpool. As instalações ficavam no porão de um antigo armazém de
frutas e verduras em Mathew Street e iria se chamar The Cavern. Alan
Sytner concordou em agendar o Quarrymen para uma apresentação em
companhia de outros grupos locais. Logo em seu primeiro contato, o
Cavern se revelou um ambiente completamente hostil, com fervorosos fãs
de jazz. Eles costumavam tolerar o skiffle, por sua semelhança com o
blues e o folk, mas eram fielmente contra o rock. Porém, apesar da
divulgação como um grupo de skiffle, John insistia em seus números de
Elvis e Fats Domino, que provocavam um silêncio repugnante vindo da
platéia. Nada conseguiu conter John, a não ser um bilhete urgente vindo
da direção do clube em que dizia: “Corte essa porra de rock”.

Quando a década de 1960 começou, os lucros do Cavern começaram a
cair e Alan Sytner decidiu transferir o negócio para o contador da
família, Ray McFall, um metódico homem de negócios. Apesar de não
simpatizar muito com o rock’n’roll, McFall percebeu o ritmo e sua
efervescência juvenil a tempo, e em agosto de 1960, enquanto os Beatles
excursionavam pela Escócia com Johnny Gentle, o Cavern apresentou suas
primeiras beat sessions, com os requisitados Rory Storm and the Hurricanes e Gerry and the Pacemakers.

Visando a ascensão do rock e preocupado em manter o público do
jazz, McFall encontrou uma maneira de acomodar ambos os gêneros sem que
seus respectivos admiradores precisassem se cruzar. A Mathew Street, rua
do Cavern, ficava na zona comercial de Liverpool, a um minuto a pé de
ruas movimentadas como a North John Street e Whitechapel. As jovens
funcionárias de escritórios e lojas, que eram o principal público dos
grupos beat, invadiam a região na hora do almoço, olhando as vitrines
das lojas ou comendo sanduíches nos degraus de monumentos vitorianos.
Ligando todos os pontos do guia dos negócios, McFall marcou as sessões
beat para a hora do almoço no Cavern, da uma às duas da tarde.

Mona Best – mãe de Pete, até então o baterista dos Beatles –, como a
agente do grupo, havia recomendado a banda do filho para McFall logo
depois de retornarem de Hamburgo. No início de 1961, Bob Wooler foi
contratado como mestre de cerimônias e disc-jóquei residente do Cavern, e
passou a insistir com seu novo empregador para que contratasse os
Beatles. Devido a compromissos marcados da banda, eles não poderiam
tocar nas noites de quarta-feira – único horário disponível para as
sessões beat – e a saída que McFall encontrou fora marcar os Beatles
para as sessões na hora do almoço nos dias de semana. O horário do
meio-dia estava quase sempre desocupado porque muitos músicos de bandas
tinham outros empregos das nove às cinco em fábricas ou escritórios.
Para John, George, Pete e Stu não havia nenhum problema com trabalho,
mas para Paul McCartney foi um complicado momento de escolha, que
poderia ter resultado na inexistência de músicas como Yesterday, Hey
Jude e tantas outras da música pop. Paul tinha um precioso emprego na
firma de bobinas elétricas Massey and Coggins, onde fora selecionado
como alguém com potencial de gerente e trabalhava no escritório com um
salário de sete libras semanais. Ausentar-se durante três horas
diariamente – uma para montar os instrumentos, uma para tocar e uma para
guardar tudo – poderia comprometer seriamente seus planos de músico.
John reagiu ao dilema de Paul com pouca compreensão. “Eu sempre lhe
dizia: ‘Encare o velho, mande ele se foder. Ele não pode bater em você… é
um velho’”. Mas Paul não se preocupava apenas com seu pai, ele achava
que tocar no Cavern poderia arruinar suas perspectivas na Massey and
Coggins, o que causou uma grande revolta em John. “Eu disse a ele pelo
telefone: ‘Se você não vier, está fora’. Assim, ele teve que tomar uma
decisão entre seu pai e eu, e, no fim, me escolheu”.
A julgar pelo baixo padrão de condições sanitárias e segurança, o
Cavern jamais poderia ter existido. Como porão de um armazém que
abrigava frutas e queijos em trânsito das docas, seus recursos como
local de diversão praticamente não existiam. Depois de entrar por uma
estreita porta na Mathew Street e descer dezessete degraus de pedra,
chegava-se até um espaço que não media mais do que quinze metros por
dez, limitado por paredes de tijolos vermelhos e dividido por três naves
com abóbadas. Não havia aquecimento mecânico, ar-condicionado ou
exaustores, nenhum limite no número de pessoas admitidas, nenhum alarme
de fumaça, sistema anti-incêndio ou saídas de emergência.
Situado na extremidade interna da nave central, o palco tinha pouco
mais de meio metro de altura, e acima dele um sarrafo de madeira
cravejado de lâmpadas comuns de 60 watts eram a única iluminação do
local. Atrás do palco havia apenas um camarim comunitário que era usado
também como área de afinação dos instrumentos, de onde Bob Wooler
(conhecido como “Mister Big Beat”) anunciava as atrações pelo sistema de
som do clube e tocava discos de sua vasta coleção pessoal durante os
intervalos. Os músicos usavam os mesmos banheiros dos freqüentadores,
tão desagradáveis que a maioria – sobretudo as mulheres – achava mais
aconselhável não sair de casa sem estar completamente “aliviada”.
Quando o Cavern estava lotado, o que não era difícil de acontecer, o
calor no salão de tijolos sem ventilação era assustador. Antigos
freqüentadores lembram como, ao descer os dezessete degraus, o calor
sufocante ia tomando conta aos poucos e logo se estava no caos completo.
No interior havia múltiplos odores: o aroma azedo de vômito dos restos
de queijo que se infiltrava pelas paredes do armazém, fumaça de cigarro,
cheiro de suor, laquê, desinfetante, fungos, sopa de rabada e
excremento de ratos. O calor e a vibração provocavam uma chuva de
pequenos flocos que caíam do teto sobre os dançarinos, conhecida como a
“caspa do Cavern”. Outra coisa comum era que moças e rapazes
desmaiassem; quando isso ocorria no meio da platéia, a única maneira de
fazer com que respirassem ar puro era passá-las como trouxas deitadas
por cima das cabeças de todo mundo.
A primeira apresentação dos Beatles na hora do almoço no Cavern
aconteceu numa quinta-feira, 9 de fevereiro, em troca de um cachê de
cinco libras. Logo depois da apresentação, Ray McFall contratou os
Beatles como o grupo residente do clube para as horas de almoço,
juntamente com o Gerry and the Pacemakers. Apesar de todo o sucesso dos
Beatles e dos grupos beat que lá tocavam, a noite era um horário
principalmente reservado ao jazz tradicional. McFall não queria afastar
de vez os fiéis freqüentadores e acabou deixando os jovens fãs de
rock’n’roll desiludidos. Nos fins de semana, o clube recebia os
tradicionais grupos de jazz e nas terças, única noite além de quarta em
que o lugar funcionava, o Cavern apresentava o Bluegenes, grupo que
tocava uma mistura de jazz e rock com um antiquado contrabaixo acústico.
Apesar da desilusão de John em relação às noites do Cavern, não houve
problemas com o outro grupo residente dos shows na hora do almoço, o
Gerry and the Pacemakers. John e o Gerry se conheciam desde os tempos
escolares. Apesar de toda rivalidade em cima do palco, eram grandes
amigos fora dele.
Foi assim que a estreita e deserta Mathew Street, com seu
calçamento de pedras arredondadas, começou a ser tomada por uma
inusitada movimentação durante o dia. Ao meio-dia, de segunda a sexta,
uma imensa fila subdividida em fileiras de quatro pessoas rapidamente se
formava diante da entrada em forma de alçapão do Cavern, estendendo-se
por uns oitenta metros, passando por armazéns, caminhões de entrega e
engradados de frutas empilhados, até a esquina com a Whitechapel. Apesar
da quantidade e da excitação, tudo ocorria de modo pacífico e
organizado. Tudo era comandado por um único porteiro do lado de fora e,
dentro, não havia nenhum tipo de “segurança”. O ingresso custava um
xelim para os sócios e um xelim e meio para os não-sócios. Nenhuma
bebida alcoólica era servida nas horas de almoço ou à noite, apenas café
e refrigerantes.

Todas as importantes bandas de Liverpool contavam com seus próprios
seguidores. Mas a partir de fevereiro de 1961, quando os Beatles
começaram a tocar diariamente no Cavern, suas fãs exibiam
características de um autêntico movimento. A cada apresentação, as vinte
primeiras fileiras com cadeiras de madeira debaixo da abóbada central
ficavam tomadas por seus penteados de colméia, suas saias-balão e seus
olhos delineados por rímel. Antes de cada apresentação, como todos os
outros Beatles, John recebia um dilúvio de telefonemas pedindo-lhe para
tocar certas músicas ou dedicar certas canções. E, depois de tocar,
todos os cinco tinham à sua escolha um verdadeiro banquete humano, mais
ousado ainda do que tinham conhecido em Hamburgo. “Um dia entrei na
minha perua depois de apanhá-los, mas ela não conseguia andar”, recordou
Neil Aspinall. “As rodas da frente estavam se levantando do chão.
Quando fui ver e abri a porta traseira, haviam dezoito garotas lá com
eles”.

Mas os Beatles no Cavern não eram apenas coisa de garotas. Jovens
que anteriormente ficavam furiosos com suas namoradas pelo interesse por
músicos pop, agora se entregavam ao mesmo fascínio, ainda que de uma
forma mais contida e reservada. Numa época de crescente conscientização
masculina da moda, os rapazes ficavam intrigados com a roupa toda em
couro preto dos Beatles e suas botas de cowboy e vasculhavam as
limitadas lojas de roupas masculinas de Liverpool em busca de um estilo
parecido. No Cavern, as apresentações dos Beatles estavam longe do
profissionalismo: enquanto tocavam, tragavam cigarros, bebiam
refrigerantes na garrafa, faziam piadas internas, puxavam conversa com
amigos na platéia. Quando, como acontecia com freqüência, os precários
pontos de eletricidade ficavam sobrecarregados e silenciavam os
amplificadores, John e Paul reproduziam um esquete dos comediantes
Morecambe e Wise, uma cena do Goon Show, ou então cantavam o jingle do
anúncio na TV do pão de forma Sunblest.
A tia Mimi ainda não fazia nenhuma idéia de como John passava seus
dias, acreditando que tivesse se rematriculado ao voltar de Hamburgo.
Porém, as suspeitas de Mimi foram despertadas quando grupos de garotas
passaram a freqüentar o portão da frente de Mendips, casa em que John
morava com Mimi. “Então soube que John fora visto tocando com os Beatles
naquele lugar cavernoso”. Furiosa por ter sido enganada por tanto
tempo, ela decidiu pegá-lo em flagrante no Cavern e convocou suas irmãs
Nanny e Harrie para proporcionarem apoio moral. “Fiquei chocada. Nunca
tinha visto um lugar como aquele”, ela lembrou. “Era como um celeiro. O
homem na porta me disse: ‘A senhora não pode entrar aí’. Eu disse a ele:
‘Claro que eu posso, sou a tia de John, Mimi’. Tive de tomar cuidado
para não escorregar nos degraus, eram tão íngremes, e estava muito
escuro. Não conseguia enxergar no começo, mas aí pude vê-lo no palco.
Nunca tinha ouvido tanto barulho. Aquilo não era música para mim… só
barulho. Eu observei cabriolando. Não achei nada divertido. Estava
furiosa. Queria arrastá-lo para fora do palco pela orelha”. John, por
sua vez, se assustou quando avistou, em meio à penumbra do Cavern, três
de suas tias com os costumeiros casacos, chapéus, bolsas de couro e
guarda-chuvas, sentadas na fila da frente entre as garotas. “Ele começou
a cantar como fez aquele dia na festa da igreja”, recordou Mimi.
“’Oh-oh, Mimi está aqui…’. Eu disse a ele tudo o que pensava depois do
show. Fiquei furiosa porque ele devia estar estudando na faculdade de
arte, e não tocando num lugar daqueles. Achei que estava se expondo ao
ridículo”.
O Cavern foi essencial para a carreira dos Beatles, onde tocaram
292 vezes. Foi lá que começaram a conquistar a Inglaterra, aprimorar
suas técnicas e onde conheceram Brian Epstein, que se tornaria o
empresário que os ajudou a chegar ao topo do mundo. Em 1966, o clube
fechou suas portas por não conseguir saldar suas dívidas. Depois de
fechado, empresários brigaram por ele até ser vendido para Joe Davey e
reaberto ainda em 1966. O Cavern ficou aberto até 1973, quando foi
fechado definitivamente. Dois meses depois, foi demolido para a
construção do circuito ferroviário Merseyrail. Em abril de 1984 foi
anunciada a abertura de um novo Cavern. Mais de 15.000 tijolos foram
conservados da demolição do antigo Cavern e usados na reconstrução dos
arcos e abóbadas. Desde então o clube vem funcionando normalmente, sendo
um dos lugares mais visitados de Liverpool, principalmente na
Beatleweek.
Fonte: Beatlepedia.
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